Em tempos de quarentena e de pandemia, nada melhor que um livro sobre... outra pandemia.
Um livro que não podemos perder, um autor português que definiu a literatura, uma história que nos espanta em vários sentidos. "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago.
Este livro fala sobre uma pandemia que provoca uma cegueira misteriosa que, ao contrário das outras, é branca. Tudo começa com um primeiro homem que fica cego no meio do trânsito, deixando de poder conduzir. É acompanhado a casa por alguém que acaba por lhe roubar o carro, e depois a esposa acompanha-o ao oftalmologista que nunca viu nada assim. E deixaria de ver, já que ele próprio cegou. Cegou o médico, a sua assistente, os pacientes que estavam na sala de espera nesse dia. Assim que compreendeu ser uma cegueira que se pegava facilmente, o médico alertou as autoridades de saúde pública e foi colocado em quarentena. A esposa foi com ele, dizendo estar cega também, mas era mentira. Ela esperou a sua vez, mas não chegou a cegar.
A quarentena do casal foi num antigo hospital psiquiátrico que o governo designou. Depressa o grupo se juntou: o primeiro homem, a esposa, o ladrão de carros, o médico, a esposa, uma jovem paciente promiscua, um paciente menino, um paciente velho de pala. A estes outros se foram juntando, até estar com lotação esgotada.
Confesso que é difícil falar sobre este livro, dar uma opinião e refletir da forma mais completa possível. É um livro que deve ser bem digerido. Precisa de tempo e calma para ser lido, para absorver cada frase (comprida) e compreender não só o seu sentido lateral, mas todos os outros sentidos que possam estar escondidos, implícitos. Saramago escreve torto por linhas direitas.
Não há como evitar começar a ler tentando comparar esta ficção com os tempos que vivemos. Aliás, acaba por ser uma hipótese rara, quem diria que poderíamos fazê-lo? Quem diria que este livro poderia vir a ser lido à luz de uma epidemia real?
Contudo, descobrimos que que no "Ensaio sobre a Cegueira" tudo é ainda mais cruel e desumano. Tudo foi levado ao limite.
Entregues aos seus próprios cuidados, as personagens ficam abandonadas e essa é a pior de todas as epidemias. A individualidade, a falta de organização humana, de um governo. A comida depressa se torna escassa e cada vez mais se sublinha o lema "cada um por si". Há apenas uma pessoa que vê, a mulher do médico, e mesma essa não o admite por medo. Afinal, "em terra de cegos quem tem olho é rei" e ninguém quer ser governado. Começam os roubos, a imundice, o uso do poder e das armas, o fim do mundo. A cegueira é branca, mas os seus efeitos são negros. A união não fez a força.
Não é disso que precisamos agora, com este Corona virus nefasto? De união?
Afinal, nós até nos podemos ver, mas não nos podemos tocar. Ao contrário destas personagens, que se reconhecem pelo tacto, nós temos que manter distância. Qual o limite do equilíbrio entre o isolamento e a distância social, a sociedade e a individualidade?
Toda esta reflexão nos leva ao ditado, seja em epidemias ficcionais ou reais, ou na vida quotidiana e na normalidade: o maior cego é aquele que não que não quer ver.
É um livro nu e cru, repleto que situações extremas que fariam sentido numa situação limite como esta. A esperança torna-se cada vez mais fraca e vamos percebendo como é tão humano ter esperança. Quando esta acaba, deixamos de ser humanos.
Uma crítica à sociedade, bem construída, à maneira de Saramago. Um livro que não poderia deixar de ser inteligente.
"Ensaio sobre a Cegueira" está adaptado aos cinemas. Um filme que já vi há muito tempo e que recomendo, fazendo-nos refletir da mesma forma que o livro.
Quem já leu e já viu? Qual a vossa opinião?
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